# Re(viver)*


Estou presa no universo das palavras. Não consigo avançar nem retroceder. Não consigo mover-me e já há horas que estou a tentar libertar-me. As subclasses tentam consumir-me. Agarram-me, balançam-me e sussurram-me ruídos semelhantes a insultos. As palavras começam a escassear. A caneta está gasta e os meus dedos estão a fazer nós brancos de tanta força usarem para agarrarem somente a esferográfica. Não sei o que fazer, pensar ou sequer acrescentar. Na folha branca de papel, escrevo a história de toda uma vida, de toda a minha vida.
Recordo-me que nasci pequena, sem motivo aparente, mas com amor suficiente. Aprendi a andar, a completar sílabas, a formar palavras. Sabia o nome da mãe, do pai, da avó e do cãozinho lá de casa. Comecei a correr, sem chinelos nos pés. Brincava na lama, e estragava a cama. A mãe zangava-se e o pai protegia. Eu chorava e o primo mais velho criticava. Então, eu comecei a fechar-me no quarto com os meus amigos imaginários. Comecei a sorrir, a saber contar piadas. Fui para a escola e aprendi a ler. Com as letras, vieram as frases longas e os textos complexos. Vieram também as asneiras proibidas e os palavrões. Comecei a crescer demasiado. Uma borbulha aparecia-me na testa e outra no canto da bochecha. Deixei-me dos desenhos animados e das cantigas infantis. Ouvia música nas alturas e dançava feita maluca. Ultrapassei a altura da avó e depois a da mãe e senti-me superior a todos. Respondia mal, refilava com tudo. Não gostava deste mundo e muito menos do outro, até aparecer a toupeira que roubou o meu coração. Depois, nada mais importava. Até a desilusão chegar, claro. O mundo caiu-me em cima, o tecto desabou e o corpo "faleceu". Ultrapassei a dor, passado um tempo. Fiz o secundário todo e licenciei-me em psicologia, lá o curso que queria seguir. Acabei por encontrar outro alguém. Trocamos desejos ardentes e o tão falado amor verdadeiro. Casamos, tivemos um filho gordinho e outro alto como o pai. Depois nasceu a princesa que a mãe tanto mimou e outra que ninguém programou. O trabalho já cansava e os fins-de-semana eram como férias. Mais tarde, lá me apareceu o tal cabelo branco que tanto receava. Olhava-me ao espelho e não me sentia bonita. não dei pelo tempo passar e, perdi o marido. Vi-me, novamente, fechada no quarto, mas desta vez sem amigos imaginários. Sentia falta de um carinho, de uma palavra amiga e chorava sufocada. Os filhos, há semanas, que não os via. Estavam "ocupados" lá como diziam. E eu, sozinha, acompanhada pela solidão. Deu-me a dorzita nos rins. Nada de preocupante, pensei. Depois a picada na cabeça, e por fim, a picada no coração.
Mal acabo de ler, sorrio. É engraçado como meia dúzia de palavrinhas relatam oitenta e dois anos de uma vida repleta de sonhos, medos e memórias.

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